Reprodução Humana Assistida Post Mortem: comentários acerca da declaração de vontade

Recentemente foi manchete nos jornais que Elaine Soares dos Santos, viúva de Paulo César dos Santos, mais conhecido como Paulinho, cantor e percussionista brasileiro do grupo de soft/pop rock Roupa Nova, pretendia realizar inseminação artificial para engravidar do cantor que havia falecido em dezembro de 2020, vítima da COVID-19.[1] Em razão disso, o assunto sobre a reprodução humana assistida post mortem gerou debates, principalmente quanto às questões éticas e de direitos sucessórios.

Sobre esse tema intrigante, cumpre esclarecer que “as técnicas de reprodução humana assistida (RHA), consiste em um conjunto de métodos artificiais desenvolvidos para a concepção humana, realizados em laboratório. Ela compreende desde a mera introdução dos gametas masculinos no sistema reprodutivo feminino até as mais refinadas técnicas de fertilização in vitro”[2].

No Brasil, não há uma legislação específica que regulamente a matéria, todavia, é possível verificar que as técnicas de reprodução humana assistida são permitidas por meio de atos normativos e administrativos que condicionam seu uso, buscando observar, ainda que de forma administrativa preceitos éticos, civis e constitucionais.

Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina buscou sistematizar normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução humana assistida por meio da Resolução n.º 2.294/21, estabelecendo princípios gerais, quais são os pacientes que podem ser submetidos as técnicas, responsabilidade das clínicas e centros, doação e criopreservação dos gametas ou embriões, diagnóstico genético pré-implantacional de embriões, gestação em substituição (cessão temporária do útero) e inclusive, sobre a reprodução humana assistida post mortem. A propósito, a Resolução estabelece que “é permitida a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado.” Portanto, ainda que o companheiro(a) tenha fornecido o material biológico, o consentimento para utilização póstuma não se presume, sendo necessário autorização específica do falecido para o seu uso. Aliás, sobre esse consentimento, é importante tecer alguns comentários.

Primeiro que o Código Civil em seu artigo 107, estabelece que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. Todavia, muito embora não haja uma lei específica sobre a declaração da vontade para o uso do material biológico post mortem, há o Provimento do Conselho Nacional de Justiça n.º 63[1], o qual prevê que nessa hipótese deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou da falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida.

Além disso, há também entendimento consolidado no Enunciado n.º 633 do Conselho Federal, aprovada na VIII Jornada de Direito Civil, a qual possui orientação no seguinte sentido de que é possível a reprodução humana assistida por viúvo ou companheiro sobrevivente  – por meio da maternidade de substituição, desde que haja expresso consentimento manifestado em vida pela sua esposa ou companheira.

Segundo comentário importante sobre essa declaração de vontade, decorre do recente entendimento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.918.421 – SP (2021/0024251-6), o qual entendeu que frente a ausência de norma específica, o testamento é principal instrumento para se assegurar a declaração de vontade, pois é através deste instrumento que se pode exercer a autonomia pessoal do indivíduo e não se limita ao conteúdo de ordem patrimonial, bem como, é o principal meio para se garantir o livre planejamento familiar, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, pois “estaria ligado ao ato consciente de escolher entre ter ou não filhos de acordo com seus planos e expectativas”, inclusive após o falecimento.

Diante de tudo o que foi exposto e a das questões éticas, civis e constitucionais sobre o tema, imperioso destacar que o ideal para qualquer pessoa que busque garantir a segurança jurídica de sua vontade póstuma é externar sua vontade por meio de instrumento público ou particular com firma reconhecida ou por meio de testamento.

[1] “A Corregedoria Nacional de Justiça, no âmbito de sua competência regimental, editou o Provimento n. 63, de 14 de novembro de 2017 (DJe de 17 de novembro de 2017), que institui modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida.”

[1] Mulher de Paulinho, do Roupa Nova, anuncia que está grávida do cantor falecido. Disponível em: <https://istoe.com.br/mulher-de-paulinho-do-roupa-nova-anuncia-que-esta-gravida-do-cantor-falecido/>. Acesso em 19 de setembro de 2021.

[2] PAGLIARI, Isadora Cé; GOZZO, Débora. Responsabilidade civil dos médicos e as clínicas de reprodução humana assistida. Coordenação Miguel Kfouri Neto e Rafaella Nogaroli. Debates Contemporâneos em Direito Médico e da Saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. Pag.126.